Onde está a loucura?



"Aquele ali se deu mal.” 
“Quem é?” 
“Não sei, mas que ele se deu mal, ah, como se deu mal. Tinha que ser recolhido justo no dia do Tonhão”. 
“É, o Tonhão é foda mesmo. Soube que uma vez ao tentar imobilizar uma mulher, quando puxou os braços dela pra trás, arrancou-os do corpo.” 
“Nossa, doeu até em mim.”
“Doeu o quê! Você não tem braços.” 
“Enxerida.” 
“Eu? É você que está aí, prostrada nesse corredor fedorento. Detesto o produto de limpeza que usam aqui, deve ser o mais barato e vagabundo que encontraram. Mas, já que está aí cuidando da vida dos outros, o que esse maluco fez?” 
“Ouvi dizer que quis montar uma orquestra.” 
“E isso é lá coisa para se internar alguém no hospício. Olha só, ele até é bem bonitinho, não tem cara de louco.” 
“E louco tem por acaso uma cara especial? Ele até é bonitinho, mas se continuar se esperneando desse jeito, o Tonhão vai acabar com ele.” 
“É, o Tonhão é mesmo um malvado. Tá, mas e a orquestra?”
“É que ele cismou em criar uma orquestra de grilos.” 
“Mas não é uma má ideia, afinal...” 
“Mas é que eles não entendem nada de grilos. Ah, não entendem mesmo. Como não entendem de nada, esse coitado virou louco, se virou. Chega dar dó ouvir seus gritos.” 
“Como é que você ficou sabendo disso?” 
“A Zulmira da ala oeste me contou. Aquela lá sabe de tudo. Disse que o rapaz estava até indo bem. Tinha capturado alguns grilos e os ensinado inclusive a estridular As Quatro Estações, de Vivaldi...”
Estri o quê?” 
“Nossa, como você é burra. Não importa. A coisa é que ele conseguiu fazer os grilos tocarem algo melhor que aquele maldito cri-cri-cri.” 
“Então eles tinham é que homenagear esse rapaz...” 
“Já te disse, eles não entendem nada. Além disso, a Zulmira contou que ele piorou quando ficou nervoso porque não conseguiu apresentar-se no teatro municipal. Coitado, agora está aqui, trancafiado.” 
“Mas pelo menos ele conseguiu se salvar do Tonhão. Olha lá, chegou vivo no quarto.” 
“Grandes esperanças. Dizem que é o Doutor Merival que vai tratá-lo. Aquele lá nunca curou ninguém. Pelo contrário, com ele até quem não é maluco, fica maluco.” 
“Então esse rapaz se fodeu mesmo. Você viu como o Tonhão passou por aqui, todo sorrisos? Ele adora o trabalho.”
 “O Tonhão é um filho da puta, isso sim.” 
“Se é, pobre do rapazinho!” 
“Já nos divertimos por hoje, tá na hora de darmos com as patas daqui. A Zulmira ouviu falar que hoje ia ter dedetização. É um dia perigoso. Melhor irmos.” 
“Nem me assusta, vou indo. Tchau.” 
“Tchau.” 

***

 As baratas então mergulharam nas brechas da parede, sumindo nas sombras de túneis irregulares escavados na velha madeira, e desaparecendo por canos enferrujados, cheios de limo e dejetos, um mundo que lhes é particularmente agradável, como apenas o próprio lar pode ser.