Novo romance se propõe dar voz ao "monstro"



Em tempo de posições tão divididas, o clássico O Médico e o Monstro (ou se preferir O Estranho Caso de Dr. Jekyll & Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson não deixa de ter espaço ao propor a divisão das distintas, mas binárias personalidades do indivíduo: O bem, representado por Jekyll, e o mal, por meio de Mr. Hyde. E assim foi visto por muito tempo, contudo em um novo lançamento da Editora Record, Daniel Levine propõe uma nova leitura do caso e dá voz a Hyde, e de certa forma caminha em direções contrárias as do original.

Temos que, obviamente, antes de mais nada ponderar a suspeitabilidade da voz narrativa de Daniel Levine, já que o autor, diferentemente do original, constrói seu novo romance na voz em primeira pessoa do próprio Hyde, o que garante a névoa desta estranha relação. Essa voz ao longo do romance reproduz um pouco de vitimização e não deixa de manifestar-se por muitas insinuações. Com sua eloquência, o narrador aproveita-se de lacunas e brechas do romance de Stevenson para criar sua própria teoria, incluindo novos elementos ao passo que não deixa de ater-se a certa fidelidade ao original.

Contudo, mesmo buscando certa fidelidade aos acontecimentos, por ser um romance de cunho fortemente psicológico, e nesse sentido que ambas as obras se distanciam, e muito. Se por um lado, Stevenson tentava demonstrar que todas as pessoas possuem um lado bom e outro mau e assim buscou como se numa experiência química separando o hidrogênio do oxigênio, separá-lo, de um lado Jekyll, do outro Hyde, Levine retoma o caminho de individualizar, tornar una, tanto a maldade quanto a bondade, as dúvidas, os anseios. Em seu romance ainda que ele mantenha a cisão física, na verdade essa cisão não ocorre no campo psicológico com um Hyde Consciente de ser Jekyll, e um Jekyll muito suspeito aos olhos de sua nova personalidade que joga uma série de sombras sobre o comportamento do Doutor.

Nesse sentido, a obra é interessante e provavelmente exija leituras mais concentradas, inclusive porque o grau psicológico e complexo da trama nos entrega um horror a ser interpretado. Além disso, como disse anteriormente, a voz de Hyde, creio propositalmente, não deixe de lançar suas névoas sobre o texto, e em muitos momentos aumentando a confusão entre as personalidade. Por fim, as rememorações do Monstro, acuado na casa de Jekyll enquanto espera conscientemente o desfecho trágico, acabam por nos deixar uma única mensagem clara: que a experiência de Jekyll fracassou com veemência, pois, segundo este romance, nossa contraparte negra não pode ser enxotada de nós, como propunha Stevenson.