Tempos sombrios produzem boa literatura?



Tempos sombrios produzem cadáveres, não boa literatura. Não raro, cadáveres de autores e da literatura também. Enquanto leitores, autores, pensadores, essas são questões que não deveriam escapar-nos, entretanto, com o país mergulhado nas incertezas, no medo e pincelado com as perspectivas mais dramáticas, especialmente para aqueles que prima pela liberdade do pensar, volta e meia deparamo-nos com a expressão relativista de que "os tempos são duros, pelo menos veremos boa literatura". Este é um pensamento fatalista cheio de armadilhas.

É bem verdade que a natureza do tempo que vivemos tanto influencia a obra de arte, como nos influencia enquanto "consumidores" ou produtores da cultura. Vejamos a realidade brasileira nesta segunda década de Século XXI, cada dia mais tomada pelos medos do autoritarismo. Ressalta-se que não é medo sem sentido, o leitor competente (aqui penso competência como Chomsky a pensa para a língua, ou seja, na literatura o nosso uso da capacidade plena de interpretação, nossa capacidade de realizar uma leitura dialética daquilo que lemos) percebe o caminho tortuoso à frente. Pois estes tempos menosprezados por um juiz diminuindo-os a "distopia simulada" assusta a uma grande parcela dos brasileiros conscientes das armadilhas autoritárias, e isto basta-nos uma leitura das listas de mais vendidos revela-nos a procura de leituras, por exemplo, das distopias, talvez como forma de compreensão e análise dos tempos vividos. Bem verdade também que não são poucos os casos de leituras errôneas deste gênero, mas enfim, percebemos que a truculência dos dias de hoje interferem nas nossas leituras, na escolha delas. Do mesmo modo tal influência, claro, mexe com os autores, e há no país, por exemplo, uma nova leva de narrativas distópicas que vão de autores desconhecidos do grande público, como Matheus Peleteiro e seu O Ditador Honesto a personalidades acadêmicas como Márcia Tiburi que também partiu para a ficção distópica. Se todas essas novas publicações serão boa literatura, não saberemos, pelo menos não agora, algumas é provável que resistam não ao tempo, como Não Verás País Nenhum de Ignácio Loyola Brandão,  mas que resistam porque a sociedade resiste em corrigir seus defeitos. Se lemos hoje Incidente em Antares e o achamos atual não é porque ele é visionário, mas sim porque nossa reacionária sociedade insiste manter-se atrasada.

Vejamos que o tema nos enreda, nos leva a caminhos dispersos. Ainda estamos refletindo sobre a relação e causa, boa literatura e tempos sombrios. Já falamos das distopias, gênero carrancudo, pessimista, e a cada dia mais morto para dar lugar ao realismo tenebroso. Seria mesmo? Talvez não, pois embora projetassem o futuro, quando foram escritas, as distopias já falavam de vossos tempos, ainda (espero que não seja por enquanto) os mais tenebrosos da história humana. Tenho certeza de que Orwell, Zamiatin, Brabury, Huxley e outros talvez preferissem jogar fora seus originais se com isso se pagasse a não existência da barbárie. Entendem por que preocupo-me com as relativizações. "Na ditadura tinha livro e música boa". Pode ser boa a ficção feita como denúncia? Seja lá qual for o gênero? Pior ainda, retomemos as distopias, vistas tanto por autores quanto por estudiosos da literatura como alertas para a humanidade. Pois temos sistematicamente ignorado estes alertas. Em que parte da expressão "boa" tudo isso pesa? Aliás, por si só discutir o que é boa ou o que não é boa literatura é coisa que pelo bem da própria literatura, provavelmente nunca haverá unanimidade, seja pela teoria, seja pelos leitores ou pelos próprios autores. Portanto, já partimos da suposição que não há "boa literatura". Há literatura. Toda ela. E há tempos sombrios e seus cadáveres.

Além disso, desconfio que também não passa de mera ingenuidade o mito de que felicidade não produz boa literatura. Tomemos mais uma vez as distopias, pois elas não subverteram o pensamento esperançosos, ingênuo, quiçá feliz das utopias? Não é que a literatura não verse sobre felicidade, ela simplesmente olha-a com filtros diferentes, desconfio, menos hipócrita. 

Por isso, reforço desconfie da expressão que suscita as perguntas no título deste post. Tempos sombrios produzem medo, angústia, e estes são combustíveis do desespero de quem olha o mundo com criticidade. A barbárie e o autoritarismo não podem ser relativizados, tolerados, nem mesmo em nome da boa literatura, pois acredito que a própria literatura não os tolera. Os denuncia, os critica. A  literatura renega tempos sombrios que produzem sombrios que geram cadáveres, pelo menos parte desta literatura, porque a literatura não é boa nem má, ela simplesmente é literatura, seja com as preocupações humanistas das distopias, seja o reacionarismo futurista e suas odes à guerra.

Nós só escolhemos estar entre os que são indiferentes aos tempos sombrios e seus cadáveres, ou aos que se opõe à barbárie e a restrição à liberdade intelectual.